segunda-feira, 23 de julho de 2012

RUBEM ALVES - “Gostaria que pensassem em mim como alguém que é apaixonado pela vida”


Para Rubem Alves, os títulos de escritor, educador, psicanalista, professor e teólogo, conquistados ao longo de sua vida profissional, são apenas acessórios. “Gostaria que pensassem em mim como alguém que é apaixonado pela vida”, diz. Aos 75 anos, esse mineiro de Boa Esperança (MG), que vive em Campinas (SP), recorda com alegria as lembranças da terra natal, onde passou toda a infância:“São memórias de uma fazenda velha, casinha lá fora, sem luz elétrica, lamparina a querosene, monjolo batendo milho e pobreza. Mas eu era feliz, porque não sabia que era pobre. A infelicidade se encontra na comparação.”

Rubem é professor-emérito da Unicamp, ex-colaborador dos jornais “Correio Popular”, “Folha de São Paulo” e autor de uma extensa obra literária, na qual se destacam: “O retorno e Terno”, “O Quarto do Mistério”, “Sobre o Tempo e a Eternidade”, “A Festa de Maria”, “Cenas da Vida” e “Concerto para Corpo e Alma.

Não há como discordar do autor, quando ele diz que seus títulos são apenas acessórios. Na trilha dos caminhos possíveis que traça para uma educação mais amorosa, tema central de seu trabalho, há muito mais que uma mistura de especialistas neste ou naquele assunto. Há, sim, um ser humano lúcido e intenso, que ainda acredita e aposta na beleza da vida. A Revista ECOLÓGICO selecionou um pouco da prosa poética de Rubem Alves. Desfrute!

Alegria

“Sim, eu quero viver muitos anos mais. Mas não a qualquer preço. Quero viver enquanto estiver acesa, em mim, a capacidade de me comover diante da beleza. A comoção diante da beleza tem o nome de ‘alegria’, mesmo quando as lágrimas escorrem pela face. A alegria e a tristeza são boas amigas. (...) Essa capacidade de sentir alegria é a essência da vida. (...) Na alegria, a natureza atinge seu ponto mais alto: ela se torna divina. Quem tem alegria tem Deus. Nada existe, no universo, que seja maior que esse dom.”

Vida

“Alguns há que pensam que a vida é coisa biológica, o pulsar do coração, uma onda cerebral elétrica. Não sabem que, depois que a alegria se foi, o corpo é só um ataúde. E aí os teólogos e médicos, invocando a autoridade da natureza, dizem que a vida física deve ser preservada a todo custo... mas a vida humana não é coisa da natureza. Ela só existe enquanto houver a capacidade para sentir a beleza e a alegria.”

Deus

“Deus deu aos homens a terra firme, as lagoas e os mares mansos. Mas o mar absoluto, esse ele deu ao perigo e ao abismo. Então, o jeito é só navegar no marzinho sem perigo e sem abismo! Pode ser. Mas aí o olho da gente fica feito olho de boi, parado, nada vê, e quando vê fica assustado. Deus é perigo, é abismo. Mora no grande mar. Por isso é que só nele que se espelha o céu. Quem viu o céu espelhado no abismo e no perigo esse terá, para sempre no olhar, o brilho da eternidade.”

Sentimentos

“Promessas são as palavras que engaiolam o futuro. Por isso elas se fazem acompanhar sempre de testemunhas. Se o pássaro engaiolado, em algum momento do futuro, mudar de sentimento e de ideia e resolver voar, as testemunhas estão lá para reafirmar as promessas feitas no passado. O dito e contratado não pode ser mudado.”

“Muitas são as promessas que os noivos podem fazer: prometo dividir os meus bens, prometo não maltratá-la, prometo não humilhá-lo, prometo protegê-la, prometo cuidar de você na doença. Atos exteriores podem ser prometidos. Assim se fazem os casamentos, com pedra, ferro, cimento e amor. Mas as coisas do amor não podem ser prometidas. Não posso prometer que, pelo resto da minha vida, sorrirei de alegria ao ouvir seu nome. Não posso prometer que, pelo resto de minha vida, sentirei saudades na sua ausência. Sentimentos não podem ser prometidos.”

Cozinha

“Nas casas de Minas, a cozinha ficava no fim da casa. Ficava no fim não por ser menos importante, mas para ser protegida da presença de intrusos. Cozinha era intimidade. E também para ficar mais próxima do outro lugar de sonhos, a horta-jardim. Pois os jardins ficavam atrás. Lá estavam os manacás, o jasmim-do-imperador, as jabuticabeiras, laranjeiras e hortaliças. Era fácil sair da cozinha para colher chuchus, quiabos, abobrinhas, salsa, cebolinha, tomatinhos vermelhos, hortelã e, nas noites frias, folhas de laranjeira para fazer chá.”

“A cozinha era o melhor lugar. De manhã, depois do café com leite, pão e manteiga, cada um ia para um lugar diferente. Era a hora da separação. O que era muito bom. À noite, todos nos encontrávamos de novo na cozinha, o que era melhor ainda.”

“De noite a cozinha era um lugar macio, de ficar quieto, fazendo nada, só gozando... Gozando a dança vermelha das chamas, o cheiro das resinas, o barulhinho do fogo crepitando, o gosto bom do café com bolo. Era uma festa para os sentidos tranquilos.”

Fogão

“O fogão de lenha aceso era um altar. A gente adorava sem saber. (...) A lenha queimava, perfumando o ar com o cheiro das resinas que a madeira chorava através de suas gretas. E, de repente, voavam fagulhas estalando pequenos fogos de artifício. O fogo avermelhava os rostos. (...) A conversa era só uma desculpa para estar juntos. A conversa era uma continuação das mãos. As palavras tinham carne.”

Ipês

“Um ipê-rosa florido! Já pensaram nisso? Que as flores são os pensamentos da terra? A terra pensa flores! Dentro dela, as flores ficam guardadas, dormindo, mergulhadas na escuridão. Mas, pela magia de uma árvore, os pensamentos da terra se oferecem aos nossos olhos sob a forma de flores! Dentro da terra estão todas as flores do mundo, à espera de árvores... a terra sonha ipês.”

Ver e enxergar

“Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia a frente de sua casa, porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo. Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios, escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido.”

Política

“A política, antigamente, era mais verdadeira. Os partidos não tinham os nomes cheios de letras, como os de agora. Se tinham, ninguém se importava. O que valia mesmo eram os nomes que o povo lhes dava. Em Boa Esperança, onde nasci, os partidos eram dois: os ratos e os queijos. Não era preciso dizer mais nada. Compreendia-se de imediato a natureza do jogo político. Cada partido queria destruir o outro. Rato quer comer queijo. Queijo quer ser isca de ratoeira. Era uma briga-festa marcada por foguetes, provocações, passeatas.”

“Agora, ao invés de nomes de bichos, como ratos, gambás, tatus, macacos, porcos-espinhos e cobras, os nomes se encheram de letras cujo sentido poucas pessoas sabem. Na verdade, cada letra vale por uma ideia, mas a ideia, com o passar do tempo, foi mumificada e ninguém pensa mais nela.”

“(...) Talvez o povo venha a despertar de sua apatia quando, ao invés de ter de votar nos jogadores que irão constituir os times partidários, ele tiverem de decidir sobre questões concretas do seu cotidiano. Se duvidam, perguntem ao bispo que jejuou pelo Rio São Francisco.”

Natureza

“Deus se pôs nas flores, no arco-íris, nas nuvens, nos regatos, nos peixes, nas árvores, nas frutas, no vento, nos perfumes, nos insetos, nas estrelas, só um pedacinho. Sabe aqueles vitrais maravilhosos das catedrais, feitos com milhares de pedacinhos de vidro colorido? Nenhum pedacinho, isoladamente, diz a beleza do todo. É preciso que todos os pedacinhos estejam juntos, nenhum é mais importante que o outro.”

Palavras

“Todas as palavras tomadas literalmente são falsas. A verdade mora no silêncio que existe em volta das palavras. Prestar atenção ao que não foi dito, ler as entrelinhas. A atenção flutua: toca as palavras sem ser por elas enfeitiçada. Cuidado com a sedução da clareza! Cuidado com o engano do óbvio!”

Escolas

“Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas. Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do voo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. (...) Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o voo.”

“Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.”

Crianças

“Elas ainda têm olhos encantados. Seus olhos são dotados daquela qualidade que, para os gregos, era o início do pensamento: a capacidade de se assombrar diante do banal. Tudo é espantoso: um ovo, uma minhoca, um ninho de guaxo, uma concha de caramujo, o voo dos urubus, o zunir das cigarras, o coaxar dos sapos, os pulos dos gafanhotos, uma pipa no céu, um pião na terra.”

Educação

“Não acredito que exista coisa mais importante para a vida dos indivíduos e do país que a educação. A democracia só é possível se o povo for educado. Mas ser educado não significa ter diploma superior. Nossas universidades são avaliadas pelo número de artigos científicos que seus cientistas publicam em revistas internacionais em línguas estrangeiras. Gostaria que houvesse critérios que avaliassem nossas universidades por sua capacidade de fazer o povo pensar. Para a vida do país, um povo que pensa é infinitamente mais importante que artigos publicados para o restrito clube internacional de cientistas.”

Nascer e morrer

“Dizem as escrituras sagradas: ‘Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer’. A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. A ‘reverência pela vida’ exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir.”

Aniversário

“A celebração de mais um ano de vida é a celebração de um desfazer, um tempo que deixou de ser, não mais existe. Fósforo que foi riscado. Nunca mais acenderá. Daí a profunda sabedoria do ritual de soprar as velas em festa de aniversário.”

Amar

“Amar é ter um pássaro pousado no dedo. Quem tem um pássaro pousado no dedo sabe que a qualquer momento ele pode voar”.

Metamorfose

“Não haverá borboletas se a vida não passar por longas e silenciosas metamorfoses.”

Semente



“O nascimento do pensamento é igual ao nascimento de uma criança: tudo começa com um ato de amor. Uma semente há de ser depositada no ventre vazio. E a semente do pensamento é o sonho. Por isso os educadores, antes de serem especialistas em ferramentas do saber, deveriam ser especialistas em amor: intérpretes de sonhos.”

Saudade

“A saudade é nossa alma dizendo para onde ela quer voltar.”





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